Liderança e arrogância

Tomie Ohtake - 1993

Tomie Ohtake - 1993

Uma vez tive um aluno, Danilo era seu nome. Um dos mais problemáticos que tive e não por ser um mau aluno, pelo contrário, era um aluno brilhante. O problema era que Danilo era tão brilhante que se entediava nas aulas. Frequentou as aulas apenas até o limite possível de faltas. Quando vinha, sentava-se no fundo. Ficava calado e bocejava, sem esconder o tédio e enfado de estar ali. Nesta época eu já tinha mais de 10 anos de experiência docente e sabia que minha aula podia ser qualquer coisa, menos enfadonha.

Conversando com os demais alunos, descobri um pouco mais sobre Danilo. Ele era o ‘geninho’ da classe, muito inteligente, bem acima da média, mas isolado socialmente. Não que ele fosse chato, pelo contrário, quando vinha nas aulas, interagia muito bem com os colegas, mas nunca tocava no assunto da aula ou qualquer assunto um pouco mais intelectualizado. Ele só queria se divertir e fazer piadas. O seu problema social era a falta de paciência com a falta de preparo dos colegas quando se tratava do tema da aula.

Compartilhei com meus colegas minhas impressões sobre Danilo, todos gostavam dele, pois era frequentemente o melhor aluno deles, sempre com notas ótimas. ‘Uma promessa para o futuro’ costumavam dizer. Para eles, aparentemente o comportamento social errático não incomodava nem um pouco, pois com o seu ‘brilhantismo’ já era esperado que os demais se sentissem intimidados e obscurecidos.

‘Bem’ pensei comigo mesmo. ‘Aparentemente Danilo é um problema apenas meu e vou ter que achar um jeito de lidar com a situação’. Por que só meu? Porque eu usava com frequência trabalhos em grupo. Danilo estava acostumado com isso também e não se importava, acabava fazendo o trabalho todo sozinho e os companheiros ‘ganhavam’ nota de graça. Eu sempre fui contra isso e por isso os trabalhos em equipe eram monitorados por mim de forma que cada um cumpria um papel previamente designado.

E foi assim que sua dificuldade de interação social foi enfatizada. Sendo obrigado a interagir com os colegas e confiar nos outros, Danilo entrou em desespero. Brigava com os colegas o tempo todo exigindo deles o que eles não poderiam fazer. Danilo estava bem à frente de todos e não tinha paciência de explicar-lhes coisas básicas. Por seu conhecimento, assumiu naturalmente a liderança, mas ele não tinha perfil de líder. Não sabia ouvir, só queria se impor. Não tinha paciência para considerar outras ideias e opiniões. Não conseguia se articular para explicar com detalhes o que esperava do grupo. Não conseguia ver nada de bom nas contribuições dos colegas. Não tinha respeito e gritava com eles frequentemente. Seus colegas respondiam, no começo com paciência de quem queria fazer o melhor, mas com o tempo iam respondendo às ofensas com outros impropérios.

Fazendo a história ficar mais curta, no final não se entenderam e não conseguiram entregar o trabalho no prazo. Tudo o que recebi foram reclamações uns dos outros e o pedido inclemente de Danilo para fazer o trabalho sozinho. Diante de minha recusa, Danilo não se conteve e sua falta de respeito e arrogância veio à tona com tudo, na frente de todos.

Levantando a voz, quase gritando e plenamente seguro de tudo o que dizia, Danilo manifestava sua insatisfação pelos meus critérios, enfatizando o quão brilhante ele era, com evidências mil de sua capacidade e que atitudes de professores ‘irresponsáveis’ como eu eram o motivo da sociedade estar perdida na obtusidade de pessoas mal qualificadas no poder, ocupando o espaço de quem pode fazer as transformações que o mundo precisava. 

Para mim, foi uma ótima oportunidade para exercitar meu autocontrole budista. Com muita calma e tranquilidade, fui deixando ele falar enquanto articulava os meus pensamentos. Mantinha o olhar firme nele, deixando claro que eu o ouvia e entendia os seus argumentos. Só pequei em um momento, quando deixei escapar uma risadinha quando ele disse que trabalho em grupo era para ele uma grande perda de tempo e talento, o que o levou a ficar realmente enfurecido.

Depois de seu longo desabafo, perguntei se havia terminado e comecei minha declaração com uma frase do advogado e político romano Cícero: ‘Toda arrogância é odiosa, mas a arrogância do talento e da eloquência é uma das mais desagradáveis’. E então esperei sua reação. Danilo ia começar a retrucar, mas logo percebeu que estava prestes a cair na armadilha de me reforçar, então se conteve e esperou o que mais viria.

Agora com a sua atenção e sem me preocupar muito com a plateia ávida por uma bela briga à nossa volta, comecei a falar.

‘Talvez, do alto do seu pedestal da inteligência e da perfeição você não tenha percebido o principal objetivo deste trabalho em grupo. Você acha que é o resultado final, o conteúdo, o texto entregue, não é? Bem, é importante, mas não é o mais importante.

‘O mais importante é a descoberta de si. Quem você realmente é’. Fiz uma pausa para ele pensar e tentar entender o que eu quis dizer. Pela sua cara, ainda não tinha entendido, como era de se esperar. Continuei.

‘Na sua idade, eu era como você Danilo, sempre tirava as melhores notas e me sentia tão autossuficiente que não ligava para amigos. Não preciso deles, pensava. Não preciso de ninguém. Acredito que você pensa assim também. ’ Não esperei ele concordar.

‘Um dia fiquei doente. Uma gripe forte me deixou preso na cama por uma semana inteira. Eu nunca tinha ficado tanto tempo fora da escola. Faltar à escola me deixou pior do que a doença em si, mas minha mãe era muito convincente quando queria e não tive alternativa senão amargar uma longa abstinência acadêmica na minha vida’. Alguns alunos quebraram o silêncio com risadas tímidas.

‘Quando voltei, precisava retomar a matéria, mas era tímido e orgulhoso demais para pedir aos professores. Apelei para alguns colegas e fiquei surpreso ao perceber que ninguém se predispôs a ajudar aquele que era o melhor aluno da escola. Eu simplesmente não entendia como podia ser rejeitado daquela maneira’.

‘Eu me sentia desolado e achava que todo o meu mundo ia desabar pois seria reprovado, o que não era verdade pois minhas médias eram mais do que suficientes, mas eu não via desta maneira na época. Só pensava no quanto egoístas eram os outros, ignorantes, sem senso de cooperativismo, sem alma e coração’.

‘Esta sensação ficou me consumindo por vários anos, me levando a me isolar mais ainda. Só depois de vários anos que comecei a entender o que realmente havia acontecido e porque todos se afastaram de mim. Finalmente me dei conta que o que eu colhi naquela volta à escola nada mais foi do que o resultado do que eu mesmo plantei. E você sabe exatamente do que estou falando’.

‘Espero, Danilo, do fundo do meu coração, que o que está acontecendo com você agora seja um despertar de autorreflexão que o ajude a ver o que eu levei tempo demais para perceber.

Espero estar agindo como instrumento para o seu autoconhecimento. Eu sei que poderíamos simplesmente ter uma boa conversa sobre a importância do trabalho em equipe e a auto dependência, mas sei que não adiantaria nada. Quando estamos muito cegos, só existe um jeito de abrir os olhos e este jeito é doloroso’.

O silêncio na sala era consternador. Eu percebia que Danilo se debatia dentro de si e sentia seu conflito entre o que era o certo e que era seu instinto. Este era um momento crucial no seu aprendizado, mas não quis correr o risco então continuei minha argumentação. 

‘Danilo, sei que é difícil acreditar, mas ninguém é autossuficiente. Você pode até ser autossuficiente na escola, onde o ambiente é controlado e só uma coisa, de seu domínio, é exigido de  você, mas quando você estiver progredindo na sua carreira, você vai se deparar com situações muito mais complexas, você vai ter que confiar nos outros, você vai ter que acreditar em pessoas que não são tão capazes quanto você e vai se ver forçado a aceitar que o bom é melhor do que o ótimo. Quanto antes você aceitar isso, menos você vai sofrer nesta jornada. Você pode ser um grande líder, pois já aprendeu desde cedo o valor da autonomia, da eficiência, da proficiência, da eloquência, da articulação, do conhecimento e do raciocínio lógico, mas para transformar o potencial em realidade, ainda há muito que aprender e você precisa aprender o valor da humildade, da empatia, da colaboração, da comunicação, do olhar holístico, a importância dos erros em nosso aprendizado, do equilíbrio, da diversidade e dos sentimentos em qualquer coisa que fazemos’.

Estas eram para ser as minhas últimas palavras. Supostamente seguidas por um leve suspiro geral de alívio e regozijo de todos e por uma declaração apaixonada de agradecimento vindo de Danilo. Não foi o que aconteceu. Ou minhas palavras soaram como elucubrações de um extraterrestre totalmente desconectado da realidade ou o choque foi tão grande que ele não soube  como reagir. Tudo que ele fez foi recolher suas coisas e sair em silêncio. Fiquei sem ação e perguntei aos demais o que eles acham que havia acontecido. Muitos também não entenderam, mas quem esboçou uma opinião acha que ele ficou envergonhado demais para falar.

Ele nunca mais apareceu. Tive que reprová-lo.

Reconheço hoje que posso estar errado. A história está repleta de líderes ‘bem sucedidos’ arrogantes e orgulhosos. Não duvido que hoje Danilo seja um deles, assim como não duvido que  Danilo tenha me ouvido e procurado desenvolver esta parte. O que sei é que não me arrependo de tê-lo reprovado. Fiz o meu papel como educador e o faria novamente. É muito fácil ser  um  bom professor reconhecendo apenas as qualidades acadêmicas de nossos alunos. Ser um educador consciente do seu papel de transformar mentes imaturas é muito mais difícil, mas é o caminho que escolhi.

Por Marcos Hashimoto

Co-fundador da Polifonia e Professor de Empreendedorismo na Universidade de Indianapolis - EUA, consultor de negócios e especialista em inovação corporativa.

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